Bovicina HC5: uma possível alternativa para a conservação de alimentos.

Por: Elisa França

< voltar

         Desde a pré-história, o homem vem buscando novos meio para conservar alimentos. Se antes ele secava a comida ao sol ou a guardava em cavernas frescas, com o desenvolvimento da ciência, o homem elaborou outros métodos de preservação como o enlatamento, o congelamento rápido, a adição de produtos químicos, a liofilização, entre outros. Graças aos métodos de conservação dos alimentos, as pessoas podem manter uma dieta saudável durante o ano inteiro. Pode-se comer na mesma refeição, sardinhas em lata portuguesas, suco de caju do Nordeste e pêssegos em calda argentinos. Diariamente, consumimos diversos alimentos que passaram por processos de conservação: leite longa vida, suco de laranja em lata, carne-de-sol, frutas secas e óleos vegetais.
         A perda do alimento é geralmente causada pela presença de microrganismos deterioradores. A degradação de aminoácidos e a quebra de lipídios por algumas enzimas específicas, por exemplo, resultam na formação de compostos como aminas biogênicas e o aparecimento de compostos menores como ácidos graxos livres que conferem um odor pútrido aos alimentos.
            Um método de conservação que vem crescendo no mercado é a utilização de substâncias produzidas por microrganismos vivos. Antibióticos – que são mais conhecidos por tratar doenças causadas por bactérias em humanos - vêm sendo utilizados para dificultar a ação de microrganismos que estragam os alimentos. Em alguns países, como no Canadá, os peixes são mergulhados em uma solução pouco concentrada de Aureomicina e de Terramicina para retardar o desenvolvimento de microrganismos e permitir que os peixes sejam armazenados em câmaras refrigeradas por mais tempo.
         Além dos antibióticos, bacteriocinas extraídas de bactérias do ácido lático têm sido propostas como alternativa aos métodos tradicionais de conservação de alimentos. As bactérias produzem diversos peptídeos antimicrobianos que têm sido utilizados com o objetivo de garantir a segurança microbiológica dos alimentos. Os peptídeos antimicrobianos sintetizados por muitas espécies de bactérias são denominados bacteriocinas; elas são sintetizadas nos ribossomos e apresentam ação bactericida ou bacteriostática sobre bactérias da mesma espécie ou de espécies filogeneticamente relacionadas.
         Atualmente, a Nisina é a única bacteriocina reconhecida como GRAS (Generally Recognized as Safe) pelo Food and Drug Administration (orgão governamental dos EUA que faz controle de alimentos, tanto humano como animal) e aprovada pela Organização Mundial de Saúde para uso como conservante de alimentos em mais de 50 países.
         A Nisina é utilizada em diversos setores da indústria de alimentos, principalmente em carnes, leite e derivados, produtos de panificação, enlatados e bebidas. Ela possui um largo espectro de ação e se mostra eficaz contra várias células vegetativas de microrganismos deterioradores de alimentos e patógenos de origem alimentar tal como a StapHylococcus e o Clostridium, que produz a toxina causadora do botulismo.

Uma descoberta

         No ano de 2002, Hilário Cuquetto Mantovani, professor e pesquisador do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Viçosa, descobriu uma bacteriocina existente em um bactéria chamada Streptococcus bovis HC5. A descoberta foi relatada no artigo “Bovicin HC5, a bacteriocin from Streptococcus bovis HC5”.
         Streptococcus bovis é uma bactéria Gram-positiva, anaeróbia (que cresce e desempenha suas funções na ausência de oxigênio livre), de rápido crescimento, ácido-tolerante, que fermenta amido primariamente a ácido láctico. Essa bactéria pode ser encontrada na flora bacteriana do rúmen de bovinos. Rumem é o primeiro compartimento do estômago dos ruminantes, onde vivem bactérias, protozoários e fungos que digerem a celulose.
         Durante a sua pesquisa, Mantovani percebeu que a bactéria Streptococcus bovis HC5 tinha a capacidade de inibir uma variedade de bactérias Gram-positivas do rúmen, bem como bactérias Gram-positivas de outros habitats. Descobriu-se que essa atividade antibacteriana da S. bovis HC5 acontecia devida à bacteriocina Bovicina HC5 que atua formando poros na membrana da célula alvo e apresenta potencial como agente para manipulação da fermentação ruminal.
         Em outros estudos, a bacteriocina produzida por Streptococcus bovis HC5 mostrou-se efetiva contra as bactérias Listeria monocytogenes, Clostridium sporogenes, Bacillus cereus, Bacillus thuringiensis e Clostridium ssp. Sendo assim, ela apresentou potencial para aplicação na indústria de alimentos e agora está sendo explorada para ser uma alternativa para a Nisina no mercado alimentício.

Novas pesquisas com a Bovicina HC5

         Diante da demanda dos consumidores por alimentos seguros, cresce a necessidade de ampliar e legalizar o uso de bacteriocinas em alimentos. Contudo, ainda há muitos obstáculos a serem superados como dificuldade de purificação, baixos níveis de produção e instabilidade das bacteriocinas em certos produtos alimentícios.
         Para que a bacteriocina seja aprovada como conservante de alimentos, ela deve ser identificada e caracterizada quimicamente, o seu uso e eficácia devem ser demonstrados, o processo de obtenção da bacteriocina precisa ser descrito bem como os ensaios usados para quantificação e padronização. Além disso, é preciso comprovar que a bacteriocina não é tóxica para o organismo. Portanto, dados toxicológicos e o destino da molécula após a ingestão devem ser reportados.
         Aline Dias Paiva começou a sua pesquisa com a Bovicina HC5 em agosto de 2005 no Departamento de Microbiologia da UFV. Ela possui graduação em Nutrição, mestrado em Microbiologia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa e é especializada na área de Microbiologia, com ênfase em Microbiologia de Anaeróbios, e na área de Imunologia. “Já havia essa linha de pesquisa aqui no departamento com o Hilário, meu orientador. Como eu já trabalhava com imunologia, comecei a pesquisar a produção de anticorpos específicos para a Bovicina”.
         Métodos baseados em imunoquímica têm sido desenvolvidos e utilizados rotineiramente como ferramentas analíticas em muitas áreas de pesquisa desde 1970. Apesar disso, o uso de métodos imunológicos na pesquisa sobre bacteriocinas ainda é pequeno. Embora já exista um conhecimento básico sobre a função estrutural, biossíntese e modo de ação das bacteriocinas, muitos aspectos desses compostos permanecem desconhecidos. A efetividade e a segurança da nisina como conservante de alimentos, por exemplo, já estão bem demonstradas. Entretanto o uso potencial de outras bacteriocinas, como a bovicina HC5, permanece sob investigação.
         A produção de anticorpos específicos para bacteriocinas pode prover métodos alternativos sensíveis e específicos não só para monitoramento da produção de bacteriocinas, mas também para isolamento rápido e imunolocalização destas em estirpes bacterianas ou alimentos nos quais têm sido naturalmente produzidas ou adicionadas. “Os anticorpos podem ser utilizados para detecção e quantificação de bacteriocinas em diferentes substratos pelo uso de ensaios imunoquímicos e estratégias de imunoafinidade”, conta Aline.
         Sendo assim, o desenvolvimento de métodos para a determinação de bovicina HC5 é essencial para o monitoramento de sua produção e purificação de grandes quantidades da mesma, fator essencial para o uso comercial na indústria alimentícia e estudo dos mecanismos de ação das bacteriocinas em geral.
         Aline considerou que a produção de anticorpos policlonais anti-bovicina HC5 oferecerá métodos alternativos potenciais para a purificação da bacteriocina em larga escala e, a partir dessa consideração, deu prosseguimento aos seus estudos.

A tese de mestrado

         Partindo da hipótese de que a bovicina HC5 possui capacidade antigênica, ou seja, que causa resposta ao sistema imunológico quando presente em um organismo, Aline utilizou o método de ensaio imunoenzimático para detectar e quantificar a produção de bovicina HC5.
         Os objetivos eram purificar a bacteriocina, produzir anticorpos policionais anti-bovicina HC5, verificar a especificidade dos anticorpos produzidos, monitorar a cinética de produção da bacteriocina durante o crescimento de Streptococcus bovis HC5 em meio basal, quantificar a produção de bacteriocina e avaliar o efeito citotóxico da bovicina HC5.
         A metodologia utilizada foi dividida em 7 etapas:
1) Células e condições de crescimento – a bactéria Streptococcus bovis HC5 foi crescida anaerobicamente em meio basal.
2) Extração e avaliação da atividade de bovicina HC5 - culturas de S. bovis em fase estacionária são separadas por centrifugação e as células são lavadas com tampão fosfato de sódio e depois a bovicina HC5 é extraída. A atividade da bacteriocina extraída é determinada pelo teste de difusão em meio sólido, utilizando Alicyclobacillus acidoterrestris como microrganismo indicador.
3) Purificação do peptídeo – a bacteriocina bovicina HC5 é purificada por cromatografia líquida de alta eficiência de fase reversa
4) Produção de anticorpos policlonais - coelhos da raça New Zealand e camundongos BALB/c são imunizados com a bacteriocina.
5) Análise da especificidade dos anticorpos - ensaios de Western blotting são utilizados para avaliação da especificidade dos anticorpos policlonais produzidos
6) Análise da produção e quantificação de bovicina HC5 - Após serem caracterizados, os anticorpos policlonais anti-bovicina HC5 serão utilizados para determinar a produção de bovicina HC5 durante o crescimento de Streptococcus bovis HC5 em meio basal (RICHARD et al., 2004) e para quantificação da bacteriocina.
7) Efeito Citotóxico - Para avaliar o efeito citotóxico da bacteriocina bovicina HC5 são utilizadas células Vero e o método colorimétrico de metil-tetrazolium.

         Em sua tese de mestrado, Aline mostrou que a bovicina HC5 foi imunogênica para coelhos New Zealand e camundongos BALB/c sendo que a produção de anticorpos foi mais eficiente em coelhos. Esse fator possibilita a identificação rápida e o isolamento de estirpes produtoras de bovicina HC5 a partir de várias fontes, a detecção da bacteriocina em meios complexos (meios ricos em que nem todas as substâncias presentes são conhecidas) e o estudo do mecanismo de ação da bovicina HC5. Além disso, a bacteriocina apresentou efeito citotóxico em células Vero (do rim de macacos) apenas em concentrações iguais ou maiores que 100 ug/ml.
         Esse estudo foi importante porque mostrou que a bovicina tem potencial para uso na indústria de alimentos, na medicina e na agropecuária visto que a Streptococcus bovis HC5 possui rápido crescimento com requerimentos nutricionais simples e é filogeneticamente e fisiologicamente distinta de linhagens humanas patogênicas.
         Contudo, ainda são precisos trabalhos adicionais para saber se a bovicina HC5 apresenta valor comercial.
        
Estudos atuais
         Atualmente, Aline busca verificar se a bacteriocina pode ser tóxica para células humanas e se ela desencadeia alguma resposta alergênica. Paralelo a isso, outros estudos estão sendo realizados para determinar quais são os tratamentos mais eficientes para a extração da Bovicina HC5 e em quais concentrações a bacteriocina é mais atuante contra os microorganismos deterioradores de alimentos.
         Durante os dias 21 e 22 de outubro de 2008, fui ao Laboratório de Microbiologia de Anaeróbios e acompanhei a estudante Anna Gabriela Guimarães (estagiária da Aline no projeto) no processo de crescimento da bactéria Streptococcus bovis HC5, separação das células, extração da bovicina HC5 e teste de eficácia da bacteriocina em diferentes concentrações.

           No primeiro dia, as bactérias foram isoladas em um meio sem oxigênio para que pudessem crescer durante um período de 24 horas. Os frascos em que as bactérias foram injetadas receberam CO² (gás carbônico) para que as Streptococcus bovis HC5 não morressem.
         No dia seguinte, as bactérias crescidas foram levadas para a centrífuga para separar a Streptococcus Bovis Hc5 da solução PC. Em seguida, as células foram lavadas com tampão (uma solução neutra) para retirar a solução PC do meio.
         Depois, as células foram resuspensas e separadas em recipientes de 1ml para que cada frasco recebesse um tratamento diferente para extrair a bovicina Hc5. Ela iria testar 4 tratamentos diferentes: NaCl, KCl, ácido acético e água destilada com PH modificado.
         Após a extração, foram preparadas diversas placas com bactérias Gram positivas para testar a eficácia da bacteriocina em diversas concentrações. As bactérias utilizadas foram Lactococcus latis, Bacillus stearothermophilus, Lactobacilos, AcidopHilus e Lactococcus delbruicki. A bacteriocina atua sobre essas bactérias se ligando nas suas membranas e agindo sobre a força próton-motora da célula, formando poros na membrana e desestruturando o gradiente energético e iônico. (mais informações no infográfico)
         As pesquisas com a bacteriocina da Streptococcus bovis HC5 ainda estão em andamento para saber se ela poderá ou não ser usada de forma segura na conservação de alimentos. Caso essa hipótese seja comprovada, a Bovicina HC5 será a primeira alternativa segura para a Nisina (atualmente, a única bacteriocina reconhecida como segura pela Organização Mundial de Saúde). Essa descoberta será de extrema importância não apenas para o comércio alimentício, como para a economia brasileira já que essa tecnologia nasceu aqui.

 

 
CCOM - Curso de Comunicação Social